O direito de mentir (ou omitir) sobre o estado de sua própria saúde
Artigo de Henrique Quintanilha

Pela primeira vez na história forense brasileira, está-se diante de um veículo jornalístico enquanto empresa, pessoa jurídica, usurpando-se da liberdade de imprensa, de informar, para, através de um juiz federal, invadir a vida privada (Art. 5º, item X, da Constituição) de alguém para acessar um dado, no caso, exame, relativo à sua saúde: Bolsonaro teve ou não COVID-19?
Não. Ocupar um cargo público, ainda que de chefe de Estado e de governo, numa democracia livre – e justamente por sê-la livre – não pressupõe a necessária exposição pública de sua privacidade. Não há precedentes jurisprudenciais no Brasil ou no Direito Comparado que sufraguem essa tese.
O Art. 21 do Código Civil é cristalino ao dispor que: “A vida privada da pessoa natural é inviolável…”. Dentro do capítulo dos direitos da personalidade, tais prescrições normativas não existem para proteger apenas certos indivíduos, mas, pelo contrário, na esteira da plena igualdade, a toda e qualquer pessoa humana, sem exceção, frise-se. Vida privada e privacidade guardam entre si semelhança de conteúdo jurídico.
O direito à privacidade garantido como direito fundamental, de natureza superior, portanto, conforme citado acima inscrito na própria Constituição, e, em mesma sincronia, pelo Código Civil, é irrenunciável, porque sua base é a finalidade de todo o Direito, qual seja, a dignidade humana. O sigilo médico, nessa mesma toada, é garantido, desde a vedação de aposição de CID em atestados médicos até o acesso de prontuários de pacientes. Tal se vê em farta jurisprudência do STF, a exemplo do RE 926.176-Ag, Rel. Min. Cármen Lúcia.
Nesse mesmo sentido, a norma do art. XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos proposta pela ONU, em 1948:
“Art. XII: Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.”
Contudo, certo jornalismo caolho, com total desconhecimento jurídico básico ou propositalmente com apelo ao sensacionalismo vedado pelo Código de Ética do Jornalismo daqui e alhures, em sua ânsia de produzir notícia a todo custo, tem tentado, no curso da história, invadir a vida privada de altas autoridades com o discurso fascista de que elas são “pessoas públicas” ou de que sua saúde não é mais, pelo cargo que ocupa, digna de sigilo, mas de “domínio público”. Usam, para tanto, a confusão da ideia de Estado e os princípios da publicidade e transparência que este traz consigo e da pessoa do presidente da República.
O caso de Franklin Delano Roosevelt é emblemático. O presidente americano que mais tempo dirigiu a 1ª potência mundial escondeu, por duas décadas, que era deficiente físico, justamente por acreditar que nos severos momentos de crise porque passou os EUA, transmitiria fraqueza e poderia não ser reeleito.
Absurdo imaginar que um exame de laboratório, de um presidente da República brasileiro, no segundo ano de seu mandato, estando ele, ainda por cima, em visível boa saúde física, deva ser objeto de quebra de privacidade pela via judicial. Perguntado, já declarou, inúmeras vezes, que testou negativo. E poderia simplesmente negar-se a responder? Sim. A única hipótese que vislumbramos excepcional a isso seria no curso de um inquérito ou processo criminal relativos aos tipos penais dos artigos 131, 132, 267 e 268, e em que figurasse qualquer cidadão, de novo, de modo igual, ou o presidente, a posição de investigado, acusado ou réu, resguardando-se, por óbvio, o direito de ampla defesa.
Neste mesmo sentido, o Código de Ética Médica (Resolução do CFM n. 1246/88), Art. 102 e 108, deixam claro que é vedado ao médico revelar fato do paciente e de seu prontuário médico, bem como facilitar o manuseio por outro profissional não-médico. Não bastasse isso, os artigos 1º e 5º da Resolução 1605/2000 do CFM, corrobora essa lógica, ao dispor que deve haver, sempre, o consentimento do paciente para que possa ser revelado qualquer conteúdo de seu prontuário ou ficha médica, ainda que requisitado por autoridades públicas. O mesmo se dá com um resultado de exame de laboratório.
O próprio Código Penal, que é de 1940, prevê o crime de “violação de segredo profissional”, em seu Art. 154, o que demonstra a gravidade com que o Ordenamento encara a questão da privacidade de informações pessoais.
Não devemos confundir aqui o direito de livremente manifestar-se todo cidadão, como tem sido comum algumas celebridades, sobre o seu estado de saúde antes, durante ou após curada a moléstia. De anos para cá, vimos muitos artistas, como Angelina Jolie declarar câncer de mama publicamente, após realizar exame de rastreamento genético. Outros, como o jornalista Jorge Pontual e a cantora Marina Lima declararam, em edição ao vivo do jornal Em Pauta da GloboNews e em uma entrevista, respectivamente, que padecem do chamado “mal do século”, a depressão. Não obstante a isso, não estavam – nem poderiam estar – obrigados a tais declarações públicas, muito menos a apresentar seus exames, remédios ou laudos de diagnóstico, sem seu livre consentimento, enfatize-se.
No âmbito judiciário, fora a hipótese acima aventada, também tal constrangimento não é lícito, salvo para defesa de direito ou interesse próprio e que deve correr no devido segredo de Justiça. Também na própria esfera penal, é princípio basilar o de que “ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo”, razão pela qual, por exemplo, ninguém pode ser obrigado pelo agente de trânsito a se submeter ao teste de bafômetro, prevendo o CTB sanção de elevada multa pela recusa, porém, sem descurar do direito à liberdade do condutor. É justamente aí, nesse ponto peculiar, que nós distanciamos de um regime totalitário e nós firmamos como Estado Democrático, trazendo com isso também as suas vicissitudes. Mais uma vez, uma exceção clara – e talvez a única – em que todo cidadão deve se ater à completa verdade de suas declarações sobre si mesmo: perante juntas médicas periciais a que venha ser submetido.
Não há dúvidas processuais de que falta interesse jurídico por parte do jornal “O Estado de São Paulo” para processar o seu notório desafeto, o presidente Jair Messias Bolsonaro, a fim de ter acesso ao resultado de seu exame, com a desculpa de promover a informação. De igual modo erra, gravemente, a juíza de primeiro grau, que sequer deveria ter recebido a ação judicial neste sentido, mas, ao contrário, corrobora a justificativa absurda jornal-autor da demanda para determinar, em liminar, que seja apresentado o resultado do exame em 48h, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00.
O caso já está em grau de recurso, por promoção da AGU, e certamente o TRF da 3ª Região irá sinalizar uma jurisprudência que guarde a Constituição e a dignidade humana.
De outro lado, com este caso, cabe rechaçar atitudes como essa, que tem sido frequentes, por integrantes do Poder Judiciário, que a desculpa de exercer seu convencimento racional independente para julgar os casos para si distribuídos, têm cometido verdadeiros arbítrios e praticado um “ativismo reverso” que coloca o Brasil em situação de instabilidade jurídica constante, prestando um enorme desserviço à sociedade brasileira, enquanto grassam sérios problemas, estes sim, sem soluções judiciais a contento nas prateleiras eletrônicas dos fóruns.
Sim: todos, inclusive um presidente da República, têm o direito de mentir sobre a sua própria saúde, seja por uma decisão moral individual resguardada pela garantia do inciso X do Art. 5º da Constituição c/c Art. 21 do Código Civil e consubstanciadas em diversas normas de ética médica e até mesmo em tipo do Código Penal, seja para preservação de sua própria imagem, com base no inciso V do mesmo Art. 5º constitucional, como fez, em situação muito mais emblemática o presidente Flanklin D. Roosevelt. Diante de terceiros, por todas as razões acima expendidas, temos o direito de permanecer calados ou até, se for o caso, mentir sobre o nosso próprio estado de saúde.
Henrique Quintanilha é professor de pós-graduação em direito, líder dos Juristas pela Restauração da Ordem (JURO), um dos coordenadores do Movimento Advogados do Brasil (MABr), representante na Bahia da Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil (OACB) e comentarista político.
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