Lava Jato investiga guitarras de astros do Rock doadas ao Fome Zero
E-mails de Bumlai, amigo de Lula, mostra que houve uma disputa entre a ONG e o Ministério de Combate à Fome pelo direito dos recursos levantados com os leilões
Em turnê pelo Brasil em março de 2005, o roqueiro norte-americano Lenny Kravitz visitou o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na residência oficial, na Granja do Torto, em Brasília. O astro de rock entregou ao petista uma de suas guitarras, uma cobiçada Epiphone Flyng V preta autografada, para ser leiloada no programa Fome Zero.
Na ocasião, Lula segurou a guitarra, como se tocasse em um show de rock, e posou para o fotógrafo oficial da Presidência. O instrumento foi leiloado em maio e arrematado, por R$ 322 mil, pelo empresário Pedro Grendene – que recebeu a guitarra em setembro das mãos de Lula, pai do Fome Zero.
Em 2006, ano de reeleição, seria a vez do irlandês Bono Vox, o ainda mais pop star vocalista do U2. Bono doou ao Fome Zero uma guitarra para ser leiloada e gerar – além dos recursos – publicidade ao programa carro-chefe do governo Lula. O segundo leilão, no entanto, aconteceria somente um ano depois, depois de muita cobrança e questionamentos dos fãs – uma das suspeitas levantadas na ocasião envolvia a guarda do instrumento, que supostamente estaria na casa de um dos filhos do então presidente.
Dez anos depois, a Operação Lava Jato revela bastidores dessas doações destacadas na imprensa nacional e internacional. Análise de e-mails do pecuarista José Carlos Bumlai, amigo do ex-presidente, mostra que houve uma disputa entre a ONG Ação Fome Zero e o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome pelo direito dos recursos levantados com os leilões e a preocupação da coordenadora da entidade, Fátima Menezes, em relação a cobrança da imprensa sobre a guarda da guitarra de Bono Vox.
Amigos de Lula – A organização não-governamental Ação Fome Zero foi criada por Bumlai e por outro amigo de Lula, o consultor Toninho Trevisan. A entidade funciona como um braço do Programa Fome Zero, fora do Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome.
A ONG foi responsável por promover o recebimento oficial das guitarras de Kravitz e Bono, fazer a divulgação e os leilões dos equipamentos realizados em 2006 e 2007 – tudo amplamente divulgado e registrado publicamente.
Informação da Polícia Federal, em Curitiba, reúne e-mails trocados por Bumlai, Trevisan e Fátima Menezes. Em uma dessas mensagens eletrônicas, a ex-coordenadora da ONG reclama da reversão do dinheiro arrecadado com as guitarras para o fundo de combate à fome, do Ministério de Desenvolvimento Social.
“Temos agora uma situação de tensão que é o leilão de duas guitarras. Um trabalho bem feito poderia render a AFZ (Ação Fome Zero) visibilidade, recursos e credibilidade (principalmente depois da experiência anterior)”, relata Fátima Menezes a Bumlai, em e-mail enviado no dia 17 de abril de 2007.
“Acontece que no processo de regularização dos bens doados (que é um assunto complicado para o qual os advogados do governo e os nossos parecem não ter uma posição concordante) que venho liderando a cerca de um ano trouxe à tona algumas questões que me permitem reavaliar as vantagens que a Entidade e o projeto possam ter com essa atividade.”
Segundo Fátima, que deixou a coordenação da Ação Fome Zero em 2014, um parecer jurídico do governo informava que a entidade teria que firmar um termo de cooperação com ministério e que o dinheiro “advindo do leilão efetuado deverá ser destinado ao Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza” e que a utilização dele em projetos da ONG teria que ter parecer do conselho consultivo do fundo – conselho que, segundo ela, teria se reunido duas vezes em quatro anos. “Em resumo: nós não podemos fazer uso do recurso obtido pelo leilão” – reclamou a coordenadora.
Fátima afirma na mensagem que propôs ao Ministério de Desenvolvimento Social que “como havia duas guitarras, uma fosse destinada ao Fundo de Combate à Pobreza”. “Enquanto o leilão da outra viesse para nossa Entidade que aplicaria em um projeto de cisternas em escolas”, explicou a coordenadora da ONG.
Bumlai respondeu no dia 18 que não sabia do ocorrido e iria conversar com Trevisan. O pecuarista é alvo de investigações da Lava Jato, junto com Lula, suspeitos de integrarem o esquema de cartel e corrupção na Petrobrás.
O material com bastidores das doações das guitarras para o Fome Zero foi anexado em inquérito em que Bumlai é alvo – ele é réu em processo em fase de sentença a ser proferida pelo juiz federal Sérgio Moro.
No mesmo dia que Bumlai respondeu à coordenadora da ONG, Trevisan havia escrito que concordava que seria melhor abrir mão dos recursos arrecadados com as guitarras. “O assunto da guitarra tem de fato sido uma pedra no nosso sapato. Não sei se o Bumlai concorda mas nesse caso me parece melhor entregar o dinheiro a MDS para que ele dê conta da empreitada e aplique o dinheiro dentro de sua visão.”
Trevisan opina que “firmar acordo de cooperação” parece mais uma etapa “complicada pelas características e pouco producente pelos resultados”.
Filho – Os e-mails de Bumlai, revelados pela Lava Jato, mostram também a preocupação da coordenadora da ONG com questionamentos feitos pela imprensa sobre quem guardava a guitarra de Lenny Kravitz entre a doação, em 2005, e o leilão, em 2006. Em um e-mail, Fátima relata da suspeita de que o equipamento estaria “na casa do filho”. Para a Polícia Federal, a menção seria a um dos filhos de Lula.
A guitarra doada pelo vocalista do U2 foi recebida em fevereiro de 2006. Em troca de e-mail de maio daquele ano, Fátima Menezes comunica que jornalistas cobravam a ONG para apresentar o instrumento.
“A jornalista do Estadão continua telefonando diariamente para saber onde a guitarra está. Conversamos e eu disse a ela que a guitarra estava aqui mas pedi para que ela não divulgasse a informação por questão de segurança”, comunica a coordenadora da ONG para Bumlai.
A guitarra de Bono Vox foi entregue em fevereiro de 2006 durante uma turnê da banda no Brasil. O instrumento foi leiloada em agosto de 2007, em um evento que contou com a cooperação da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e arrematado por R$ 15 mil pela internet por Sear Harton – um irlandês radicado no Brasil.
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