Natal da população em situação de rua tem novo significado
A invisibilidade cotidiana da população em situação de rua não desaparece por milagre de Natal, porém algumas iniciativas de grupos que trabalham com esse público quebram o ciclo de solidão
Todos os anos, o hábito de sentar-se ao redor de uma mesa farta e compartilhar com os familiares e amigos próximos os acontecimentos do ano que passou e os desejos para o novo ciclo que se anuncia, é uma tradição cristã que impera no Brasil. No entanto, alguns grupos sociais, que perderam o vínculo afetivo com a família, encontram- se fora desse quadro.
Estimada em cerca de quatro mil pessoas apenas em Salvador, a população em situação de rua vê o natal somente como coisa de novela. “Na minha casa nunca teve isso de árvore de natal, distribuição de presentes, isso é mais coisa de televisão mesmo”, conta Greice dos Santos Ferreira. Aos 24 anos, ela mora em uma ocupação do Movimento dos Sem Teto de Salvador (MSTS), em frente a Praça das Mãos, que recentemente foi parcialmente demolida para dar lugar a um estacionamento construído pela prefeitura.
Greice e seus três filhos – um de dez, outros de oito e quatro anos – só conhecem o natal mítico do “Papai Noel cheio de presentes” quando ele é difundido pelo comércio. O natal mais próximo deles, com ceia e presentes, acontece com algumas semanas de antecedência. Este foi o caso da ação desenvolvida pela VOL – Voluntários, que no sábado (19), realizou um natal solidário para a população em situação de rua que vive no entorno da praça.
“Percebemos que neste ano não tinha nenhum ação aberta para as pessoas que vivem nas ruas da cidade e decidimos encarar a responsabilidade de fazer algo”, argumenta Eri Suzarte, que levou a ideia adiante junto com o marido, amigos e voluntários, formando um grupo de aproximadamente 200 pessoas. O grupo de voluntários tem o objetivo final de inserir as pessoas em situação de rua no mercado de trabalho e, para tanto, precisam de todos os tipos de ajuda.
No natal da VOL teve cinema, montado sob um toldo alugado, roda de conversa, ceia e apresentação musical do maestro da Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba), Carlos Prazeres. O maestro, que sempre abraçou a causa da população em situação de rua, se apresenta gratuitamente em eventos toda vez em que é chamado. “Isso é o mínimo que posso fazer para um grupo social que eu considero o mais excluído de todos. Doar um pouco de meu tempo para levar um pouco da minha arte de presente é o mais gratificante de tudo”, disse, antes da apresentação, que também contou com a participação de Priscila Plata Rato, espalla (primeira violinista) da Osba, e do o diretor teatral Gil Vicente Tavares. No repertório dos artistas, músicas de Gilberto Gil e Chico Buarque.
Além do natal proporcionado pelos voluntários da Vol, pelo menos duas outras ações marcaram o natal da população em situação de rua da cidade. Uma aconteceu também no dia 19, sob a coordenação do Movimento da População de Rua, e de acordo com a coordenadora nacional, Maria Lúcia, contou com a participação de 80 pessoas que passam pelos cursos de reinserção profissional desenvolvidos na sede do projeto, no Pelourinho, ao longo do ano. Além de ceia, também teve apresentações culturais de teatro, dança e exposição de desenhos.
Outra inciativa, que acolheu quem mora nas ruas da cidade, foi o projeto Levanta-te e Anda, que é desenvolvido dentro da Igreja de São Francisco de Paula, no bairro Água de Meninos. A reunião contou com os cerca de 50 participantes do projeto e teve ceia, além de apresentações culturais realizadas no dia 18.
Invisibilidade que dói – Para a assistente social, Bárbara Aguiar, o período das festas de final de ano deixa ainda mais latente a invisibilidade das pessoas que moram nas ruas. A forma com que as pessoas insistem em ignorá-las é o que mais incomoda e dói. “Os que ainda guardam vínculos afetivos com suas famílias, fazem visitas às suas casas, mas quem rompeu totalmente com a família ou já não tem parentes vivos, costuma procurar algum lugar pra passar esses dias, até porque as ruas ficam mais vazias e perigosas”, conta Bárbara, que trabalha com esse grupo social há 15 anos.
Na opinião da assistente social, muitos vão procurar abrigo nos albergues da cidade, mas só o fazem em último caso, uma vez que não sentem acolhimento e afetividade por parte das equipes que trabalham nos equipamentos públicos. Essa é a situação de Silvano Silva, 20 anos, que há três anos decidiu deixar de vez a casa de sua família, no Subúrbio da cidade, e vive na Praça das Mãos. Há alguns meses também vai dormir em um dos três prédios ocupados na área.
“Não gosto dos abrigos porque os horários são muito fechados, e tem muita regra e cara feia pra a gente. Aqui chego na hora que quero e não preciso ficar de cabeça baixa pra ninguém”. O jovem revela que tem sonhos para o futuro e que, com o dinheiro que ganha fazendo bicos de pedreiro, quer construir uma casinha pra morar com a namorada, em Lauro de Freitas. Já do Natal, Silvano não espera muita coisa: “ficar aqui conversando já tá bom”. Talvez ele vá ver a mãe, que ainda vive com seus outros oito irmãos.
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