Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PMBA, professor e coordenador do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio da Bahia e docente da Academia de Polícia Militar.
Guerra é paz
Ultrapassamos a casa dos 58 mil assassinatos por ano e há razões para crer que esse quadro vai se agravar
Na última sexta-feira (28), através do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tomamos conhecimento de um dado que, se já não nos assusta como deveria, no mínimo poderia se revelar preocupante. Afinal, em 2015, a cada dia, 170 pessoas foram assassinadas neste país.
Embora não chegue a ser surpreendente, em uma sociedade que já se acostumou a conviver com o aumento das taxas de homicídios a cada novo ano, é sempre muito difícil livrar-me da sensação de que velhos conceitos de Direito Internacional, aprendidos nos meus tempos de estudante da faculdade de Direito da Ufba, ainda pareçam se encaixar perfeitamente nesse nosso cotidiano beligerante.
Nessa lógica, ainda que resguardadas as peculiaridades e a sua natureza jurídica, a beligerância intestina a que me refiro, caracterizada por uma situação de guerra ou conflito em partes do território nacional controlado por outras forças que não as estatais, mostra-se bem semelhante ao estado de coisas que os trágicos cálculos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública teimam em nos mostrar.
Ultrapassamos a casa dos 58 mil assassinatos por ano e, infelizmente, ainda temos muitas razões para crer que esse quadro deverá se agravar, pois, mesmo sem estarmos em guerra declarada com ninguém, vivenciamos o contexto de um conflito armado interno, onde morrem mais pessoas assassinadas do que em países que estão, de fato, em guerra.
Não é sem sentido que chefes do tráfico de vez em quando se intitulam “reis do morro”, pois, voltamos à barbárie, à Idade Média. Esta constatação não se restringe apenas à forma como matamos e morremos, mas ao fato de termos perdido o controle de diversas regiões nas nossas grandes cidades para traficantes de drogas e milicianos que, nos seus reinos, garantem o império da lei e se empenham em usurpar o monopólio da violência, confrontando o próprio Estado e combatendo grupos rivais, enquanto mantêm sua popularidade entre os moradores por meio da assistência social, oferecendo proteção e mediação de conflitos.
Grande parcela da violência que assola nosso país tem alguma relação com as drogas
Nesse contexto, não restam dúvidas de que grande parcela da violência que assola nosso país tem alguma relação com as drogas; seja advinda do consumo próprio ou do tráfico, todavia, em busca de mais explicações para essa mortandade, não podemos olvidar Sérgio Buarque de Holanda, revisitado por Leandro Karnal, que, ao nos definir como um povo cordial, com certeza, não se referia à nossa simpatia, mas sim à nossa passionalidade.
Sim, para o professor e historiador da Unicamp, somos cordiais, mas no sentido de cordis, que, no latim, significa aquilo que vem do coração, pois, não raro, agimos não racionalmente, mas passionalmente. Assim, nas “Raízes do Brasil” estaria outra explicação do porquê de sermos um país com um grau de violência letal tão grande que nem mesmo diplomas legais, editados como promessas de proteção para crianças, adolescentes, mulheres, idosos, afrodescendentes, indígenas, comunidade LGBT etc., conseguem evitar os mecanismos de discriminação e exclusão que tornam, principalmente, os membros de grupos vulneráveis, vítimas preferenciais da carnificina.
É, aparentemente, o Brasil não está em guerra com ninguém. Entretanto, quando se olha mais de perto é que se vê a nossa guerra civil não declarada, com seus números reveladores de uma epidemia de crimes violentos letais intencionais que fazem com que morrer de raiva, de fome e de sede sejam tantas vezes gestos naturais.
Enquanto ficamos impressionados com o “fanatismo” no Oriente Médio e quase não entendemos a razão de tanto ódio e de tantas chacinas, paradoxalmente, esquecemos a catástrofe humanitária que vivenciamos e o fato de que a nossa segurança depende de polícias nada pacificadoras que não nos deixam esquecer “1984” e George Orwell na sua mais completa tradução, pois, na novilíngua das recorrentes políticas de segurança pública tupiniquins: “guerra é paz” e “uma paz verdadeiramente permanente seria o mesmo que a guerra permanente”.
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