Negacionismo? Crença? Política? O que poderia explicar adesão ao ‘Kit Covid’?
Especialistas ajudam a compreender o porquê desconsideramos evidências científicas e trouxemos cloroquina ao nível da possibilidade
A Organização Mundial da Saúde (OMS) até insistiu, mas logo aderiu à conclusão de estudos científicos sobre a eficácia da hidroxicloroquina e da cloroquina no tratamento da infecção pelo novo coronavírus: não funcionam. Estudos também não comprovaram a eficácia da ivermectina, outro “queridinho” daqueles que apostam ser possível prevenir a Covid-19 com medidas farmacológicas.
Ambos os medicamentos, com uso contra a malária e contra infestações por parasitas, respectivamente, compõem o “Kit Covid”. Nesta semana, o material ganhou o noticiário por estar sendo distribuído gratuitamente por instituições e prefeituras no estado.
“Grande parte da crença na cloroquina como solução tem a ver com negação generalizada, em amplos aspectos. A gente prefere sacrificar algumas crenças do que o mundo inteiro”, avalia Gabriel Ávila, pesquisador professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Especialista em História da Ciência, Ávila conta que essa crença na cloroquina como solução contra a Covid-19 é apenas um dos diversos negacionismos que existem. Neste caso específico, tem a dimensão política, da representação, na qual surgiu a ideia de que há cura fácil para a doença. Por outro lado, esse negacionismo se alimenta de valores do próprio campo científico: ceticismo e desconfiança de autoridade, do tipo “não é porque alguém falou que é verdade”.
A diferença é que essa estrutura explora uma falsa controvérsia, distorce tais valores para alimentar perspectivas que não encontram sustentação nos estudos científicos.
“Na pesquisa, mesmo, a gente não tem nenhuma evidência de que isso funciona, de que seja interessante economicamente, que estados invistam tantos recursos sem produção, aquisição e distribuição desses medicamentos. Se acredita nisso porque se explora justamente essa virtude da ciência de não defender verdades absolutas. Como a ciência está sempre aberta ao dissenso para retificação e busca da verdade provisória, se aproveita disso”, explica.
Contesto, logo existo
Nesse contexto, Ávila acredita que o ponto de partida desse looping negacionista no qual estamos inseridos é resultado da concentração do conhecimento científico em poucas pessoas. Sendo assim, grande parcela da população, antes alienada nessa participação, agora querem se sentir pensantes. Contestar o conhecimento científico já estabelecido é o caminho encontrado para existir dentro desse debate.
A professora Christiane Cruz, doutora em História das Ciências e da Saúde, e membro do Núcleo de Tecnologia em Saúde do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Ifba) lembra que a crença em determinadas substâncias pode ser reflexo também da atuação da indústria farmacêutica. Se houver interesse na administração de um remédio ou outro, há investimento em pesquisas para corroborar o uso que se quer adotar.
“É muito difícil julgar, dar posição de juiz, essa coisa maniqueísta. Tem muita gente com boa intenção. Não se sabe qual é o tipo de informação científica que essas pessoas estão tendo acesso”, observa a professora, que destaca os efeitos colaterais já evidenciados pelo uso da cloroquina. Entre eles, o desenvolvimento de problemas cardíacos.
De olho no passado
A professora Christiane Cruz é responsável por desenvolver uma pesquisa sobre a gripe espanhola na Bahia nos anos 1918 e 1919. Em entrevista ao bahia.ba, a especialista lembrou que, assim como agora com a pandemia do novo coronavírus, no século XX também havia a crença em um remédio milagroso, com uso específico também para o tratamento da malária: os sais de quinino. Outro remédio popularizado na época como eficaz contra a gripe era o calomelano, que provocava diarreia e desidratação.
“Como foi divulgado pela Diretoria de Saúde do Rio de Janeiro, e o Rio de Janeiro era a capital federal, ganhou estatuto de remédio preventivo da gripe. Ao fim ao cabo, se viu que ele pouco adiantou”, explicou a professora.
Ao final da pandemia de gripe espanhola, foi reconhecido que as pessoas sobreviveram mais por causa da condição do próprio organismo do que por eficácia do quinino ou do calomelano.
“Mas não houve disputa como está sendo hoje, de presidente, disputa política se cloroquina serve ou não serve, se deve ser adotado ou não. Não há coisa dessa que eu saiba. Até onde estudei, não me recordo de nada”, acrescenta, ao comparar com o momento atual.
Na avaliação de Christiane, apesar da politização em torno da hidroxicloroquina, o comportamento das pessoas essencialmente segue o mesmo de cem anos atrás: medo diante de um vírus letal e desconhecido. Na época da gripe espanhola, as pessoas tentavam também chás, escalda-pés, caldo de galinha, curandeiros, pais de santo, orações ao Senhor do Bonfim, procissões.
“Tem historiador que diz que a caipirinha surgiu daí. Era recomendado nos jornais que se tomasse limão, cachaça e mel”, acrescenta.
Tempo da ciência
Independentemente de desespero, controvérsias, ideologia e interesse em politizar um medicamento, a pesquisadora Christiane Cruz lembra que a ciência tem protocolos e tempo próprios. Esses parâmetros, no entanto, não necessariamente acompanham o tempo de desenvolvimento de uma pandemia.
“A ciência exige mais tempo que a velocidade que a epidemia se desenrola. É inversamente proporcional”, acrescenta.
Nesse cenário, ainda tem a mutabilidade característica aos vírus. Só para se ter uma ideia, estudo publicado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indica que pelo menos seis tipos de coronavírus circularam no Brasil entre fevereiro e abril.
Por outro lado, o historiador Gabriel Ávila reforça a importância de educação mais reflexiva, com ceticismo “saudável”.
“Não é só ensinar mais a forma da Terra ou sobre bioquímica. Não vai transformar em médico pra entender que cloroquina funciona ou não, mas é ter crítica. Nem todo mundo é obrigado a saber o funcionamento da cloroquina, mas tem que saber onde acessar conhecimento confiável sobre o assunto”, acrescenta.
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