Publicado em 21/04/2020 às 17h59.

Os paradoxos da Covid-19

Artigo de Carlos Tourinho

Redação
Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal

 

Desde o mês de março vivemos um período de adaptação intenso devido aos efeitos da pandemia da COVID-19, o famigerado Coronavírus. A ciência médica e os órgãos governamentais brasileiros sugeriram a todos o isolamento social como forma de combater o contágio exponencial da doença. O Decreto Legislativo n. 6 de 20/03/2020 determinou o estado de calamidade pública em todo o País. Daí em diante, diversos decretos e portarias de estados e municípios determinaram o fechamento de comércios locais, excetuando-se os serviços essenciais, a exemplo de mercados, postos de combustíveis e farmácias.

Neste momento, são diversos os paradoxos vividos pelos brasileiros, dentre os quais aqueles de natureza política na condução da crise, de natureza econômica, trabalhista e existencial.

Na condução governamental do país, em que pese o Ministério da Saúde reverencie a ciência e as orientações da Organização Mundial de Saúde – OMS, indicando o isolamento social horizontal como meio eficiente e necessário de prevenção do contagio do COVID-19, através da campanha conhecida como “Fique em Casa”, o nosso presidente da República sustenta a necessidade de relativização do isolamento social para um estágio de isolamento vertical.

O argumento é de que o isolamento horizontal vai gerar crise econômica de tamanha monta que, para evitar suas consequências, cabe tratar o Coronavírus como uma “gripezinha”, estimulando a todos a retomarem suas atividades, exceto os que encontrem em grupos de risco (idosos e pessoas com doenças crônicas).

Por sua vez, no campo das relações econômicas, a histórica polêmica do capital X trabalho ganha novos contornos. Não se trata, neste momento, do uso da força capitalista para sobrepor os direitos dos empregados, mas de inimigo comum e invisível que simplesmente gerou impossibilidade a diversas empresas de exercerem suas atividades de forma plena. Não há exagero em afirmar que algumas empresas de porte pequeno e médio correm sérios riscos à sua existência por estarem impossibilitadas de funcionar.

De outro lado, diversos trabalhadores temem pelos seus empregos. Hipossuficientes em sua essência, encontram-se em estado de incerteza e medo de perder sua fonte de renda e sustento familiar.

Para tentar solucionar tal paradoxo, o governo editou algumas medidas provisórias, em destaque as MP 927, 936 e 944, que tratam da possibilidade de concessão de férias antecipadas aos trabalhadores, criação do Programa Emergencial de Promoção do Emprego e Renda com possibilidade de redução da jornada e salário, bem como da suspensão do contrato de trabalho, custeada pela União, além de um Programa Emergencial de Suporte a Empregos concedendo créditos às empresas a condições bem razoáveis, tudo isso com o objetivo de promover manutenção dos empregos.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6363, que discute, entre outros temas, a inconstitucionalidade da MP 936 por permitir a redução da jornada e salário e a suspensão do contrato de trabalho mediante acordo individual, gerou-se grande expectativa de que se reconhecesse a atribuição constitucional reservada aos sindicatos para atuarem como agentes sociais na preservação dos interesses dos trabalhadores através de negociação coletiva.

De um lado, diversas empresas que, impossibilitadas de funcionar por motivo de força maior, torciam pelo reconhecimento da validade plena dos acordos individuais sem necessidade de chancela dos sindicatos laborais. Em sua defesa, o argumento da necessidade de obter segurança jurídica para poderem tomar a decisão empresarial para definirem se poderiam, ou não, manter o emprego dos seus trabalhadores.

De outro lado, as entidades sindicais defendendo que a matéria que é objeto da MP 936 só poderia ser ajustada entre trabalhadores e patrões, mediante negociação coletiva, como determina a Constituição Federal. E havia aqui a esperança de que a Suprema Corte restabelecesse a importância histórica do sindicalismo no Brasil, quase que devastado diante da Reforma Trabalhista de 2017.

O paradoxo decorre do fato que empresas e trabalhadores defendiam interesses legítimos, embora antagônicos, principalmente quando se trata de um momento tão excepcional como o que estamos vivendo. Em julgamento plenário ocorrido nos dias 16 e 17 de abril, discutida a constitucionalidade da MP 936, o Supremo Tribunal Federal ao analisar liminarmente a medida cautelar decidiu pela sua constitucionalidade.

No campo das relações humanas, vivemos um momento impar. O medo da morte e do contágio. A preocupação com a saúde dos familiares, principalmente com os idosos. Os efeitos da reclusão pelo isolamento. A humanidade tem a chance de reinventar e ressignificar a própria existência. Descobrimos que temos enorme capacidade de realizar, produzir e aprender, ainda que reclusos.

A possibilidade da realização do trabalho remoto e a comunicação virtual, a exemplo das “lives” tão difundidas neste período mediante as redes sociais, demonstram que as relações humanas não retornarão à realidade como ela era. O próprio conceito de “normalidade” se modificou. Passamos a ressignificar agentes sociais que antes quase nos eram invisíveis e cuja importância agora salta aos olhos: garis, trabalhadores na produção e entrega de produtos Delivery, motoboys, motoristas de caminhão e diversas outras categorias de trabalhadores que continuam a exercer suas atividades enfrentando diariamente o risco de contágio.

E por falar em risco, o nosso reconhecimento e agradecimento destacado aos profissionais da área de saúde, verdadeiros heróis na frente de batalha.

Por fim, convém ressaltar que vemos surgir novos paradigmas decorrentes da pandemia do Coronavírus. Dizem os sábios que da crise surgem grandes oportunidades. Temos a oportunidade de reatar nosso compromisso por um novo pacto social, onde os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade sejam ressignificados por uma sociedade realmente mais justa. Que a reclusão forçada nos faça ver com mais clareza o que é importante para a nossa essência como seres humanos e como membros da sociedade com vocação para a transformação social.

Que sejamos capazes de reconhecer a importância da ciência em nossa comunidade e, nesse contexto, que nós fiquemos em casa. E que, quando possamos sair, sejamos melhores, mais completos e mais fraternos, cidadãos atuantes na luta por uma sociedade mais solidária.

Carlos Tourinho é advogado e membro da Comissão Nacional de Direitos Sociais do Conselho Federal da OAB

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