Técnica usada na Unifesp permite sequenciar o genoma do coronavírus com resolução 25 vezes maior
Pesquisadores conseguiram, pela primeira vez no Brasil, sequenciar diretamente o RNA do SARS-CoV-2 e estudar modificações bioquímicas
Cientistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) conseguiram, pela primeira vez no Brasil, sequenciar diretamente o RNA do SARS-CoV-2, o vírus causador da Covid-19. Os resultados da pesquisa, apoiada pela Fapesp, foram divulgados em artigo ainda sem revisão por pares na plataforma bioRxiv.
Segundo os autores, a técnica permite mapear o genoma viral com aproximadamente 25 vezes mais resolução do que os métodos convencionais de sequenciamento. Desse modo, é possível ter uma noção mais precisa da biologia do patógeno e de como seu genoma está evoluindo.
“É muito promissor, pois nos permite entender, por exemplo, por que há cepas mais virulentas ou mais capazes de escapar de nosso sistema imune”, diz à Agência Fapesp Marcelo Briones, pesquisador do Centro de Bioinformática Médica da Escola Paulista de Medicina (EPM-Unifesp) e coordenador da investigação.
Como explica Briones, o SARS-CoV-2 é um vírus de RNA de fita simples, ou seja, seu material genético é composto por um único filamento de nucleotídeos, cujas bases são guanina, adenosina, citosina e uracila. Para sequenciá-lo pelo método convencional, recorre-se a uma técnica conhecida como RT-PCR (polimerase por transcriptase reversa, na sigla em inglês) para converter as moléculas de RNA em DNA complementar (cDNA) – lembrando que a molécula de DNA é formada por dois filamentos de nucleotídeos. Ou seja, faz-se uma cópia complementar da fita de RNA do vírus. Em seguida, essas moléculas de cDNA são amplificadas (geram-se bilhões de clones) e sequenciadas. Entre as vantagens da estratégia estão a rapidez e a possibilidade de fazer o sequenciamento mesmo em amostras com pouquíssimo material genético.
“O sequenciamento convencional desse vírus é como tentar identificar uma pessoa olhando apenas para sua sombra. Já com o método utilizado em nosso estudo podemos olhar diretamente para o RNA viral como ele é encontrado in vivo. É muito mais fidedigno”, afirma o pesquisador.
Metodologia
Carla Braconi, professora do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da EPM-Unifesp e coautora do artigo, conta que a pesquisa foi feita com uma das primeiras linhagens do SARS-CoV-2 isoladas no Brasil, no início de 2020.
“Nós recebemos o isolado viral do professor José Luiz Proença-Módena [da Universidade Estadual de Campinas] e cultivamos o patógeno em células vero [linhagem celular de rim de macaco altamente suscetível ao SARS-CoV-2]. Depois fizemos a extração do RNA viral e sequenciamos com uma tecnologia portátil chamada MinION, da Oxford Nanopore Technologies”, conta.
De acordo com Briones, o RNA é sequenciado exatamente como sai da célula vero, sem passar por RT-PCR ou amplificação. “Apenas ‘penduramos’ um adaptador na ponta da molécula e uma fita de cDNA para a fita de RNA ficar esticada. E então só o RNA vai passando, base por base, no sequenciador. E cada tipo de base [citosina, guanina, adenosina ou uracila] e suas modificações, tais como metilação, interrompem o fluxo elétrico do aparelho com um padrão diferente e é assim que identificamos qual é qual.”
O processo produz um gráfico que se assemelha ao de um eletroencefalograma, que depois é interpretado com ferramentas de bioinformática. A sequência final gerada pode então ser comparada com os modelos de referência.
“Inicialmente, tem-se a impressão de que a sequência obtida tem um monte de erros. Mas, na verdade, são as bases modificadas do RNA. E parte dessas modificações passa despercebida pelo sequenciamento convencional”, diz o pesquisador.
A análise, feita pelo pós-doutorando João Campos, teve como foco o padrão de metilação do RNA viral. Ou seja, buscou-se olhar – entre as quase 30 mil bases que formam o RNA fita simples – quais receberam a adição de um radical metil (CH3).
“Esse tipo de modificação bioquímica no RNA é muito importante para o funcionamento adequado de vírus como o SARS-CoV-2, assim como de alguns arbovírus [entre eles dengue e zika] que integram o grupo 4 no sistema de classificação de Baltimore, composto por genomas virais com RNA de fita simples e polaridade positiva”, conta Braconi.
Os autores explicam que os RNAs em geral têm cerca de cem bases modificadas que são essenciais para as suas funções biológicas. “Depois que o SARS-CoV-2 entra na célula e a ‘obriga’ a fazer cópias de seu material genético, vem uma enzima que faz a metilação desses RNAs e essas modificações passam a ter função. São parte da informação que o vírus precisa para sobreviver. Sem analisar esse padrão de metilação, portanto, não é possível conhecer a riqueza genética real do SARS-CoV-2”, diz Briones.
Uma base frequentemente modificada no RNA do SARS-CoV-2 é a N6-metiladenosina (m6A), que está implicada na evasão da resposta imune. “Essa modificação permite ao vírus escapar do sistema de ativação dos interferons [proteínas produzidas por células de defesa com ação antiviral]. É, portanto, alvo potencial para fármacos e já há estudos nesse sentido”, conta Briones.
Se fosse possível criar um medicamento capaz de bloquear totalmente o processo de metilação do RNA viral, diz o pesquisador, o novo coronavírus sumiria das células e seria o fim da COVID-19. “O problema é que, se bloquearmos demais a metilação, as células hospedeiras também acabam morrendo, pois as enzimas que metilam o RNA viral são as mesmas que metilam os RNAs das células. Então precisa ser algo com ação muito específica.”
Tecnologia disruptiva
O grupo da Unifesp foi pioneiro ao fazer o sequenciamento direto de RNA do SARS-CoV-2 acoplado à identificação das bases m6A. O trabalho foi conduzido no âmbito do Projeto Temático “Investigação de elementos induzidos pela resposta vacinal nos indivíduos submetidos aos testes clínicos com a vacina ChAdOx1 nCOV-19”, coordenado pelo professor Luiz Mário Janini. Também participaram os pesquisadores Juliana Maricato e Fernando Antoneli.
“Em dois dos trabalhos anteriormente publicados [por grupos do exterior] foi feito somente o sequenciamento do RNA. Um terceiro também fez o sequenciamento direto, mas identificou a base 5mC. Há ainda um quarto trabalho que identificou a mesma base m6A, mas por outras técnicas que não envolvem sequenciamento direto do RNA”, informa Briones.
Segundo o pesquisador, esse entendimento detalhado sobre como funciona o genoma do novo coronavírus permite aos cientistas ter uma ideia mais clara de como o patógeno está evoluindo.
“As pessoas que falam sobre mutações sofridas pelo vírus – que no sentido stricto correspondem a trocas de uma base por outra na sequência de RNA – estão, a meu ver, presas ao paradigma do DNA. Isso não faz sentido, pois esse vírus funciona sob outra lógica. Ele nunca tem DNA em seu ciclo replicativo e, portanto, falar em ‘transcritos’ desse vírus é absurdo. O SARS-CoV-2 vive completamente no mundo de RNA”, afirma Briones, referindo-se à hipótese do RNA world, segundo a qual o mundo atual, com vida baseada principalmente no DNA e em proteínas, foi precedido por um mundo em que a vida era baseada em RNA.
“O nível de complexidade da molécula de RNA é extraordinário e, com as novas tecnologias que possibilitam o sequenciamento direto, um novo universo de pesquisa se abre. Estamos pegando esse trem no começo. Vai haver um desenvolvimento muito grande ainda, mas é o caminho a seguir”, afirma.
O próximo passo na Unifesp será sequenciar o RNA genômico das variantes do SARS-CoV-2 identificadas recentemente e investigar se há diferenças significativas no padrão de metilação.
Por Karina Toledo, da Agência Fapesp
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