‘Por trás da vaidade há autoestima’, sentencia Rincon Sapiência
Em entrevista ao bahia.ba, o rapper paulista também comentou sobre os batedores de panela, pagodão baiano e até deu pitaco sobre o futuro do Palmeiras
O apelido é inspirado no jogador de futebol colombiano Rincón, que ajudou o Corinthians a conquistar o Mundial de Clubes da Fifa em 2000. O motivo? A semelhança e a “feiura”. A ironia? Ele é palmeirense. Mas não importa, Danilo Albert Ambrosio ou Manicongo, o rapper Rincon Sapiência fez jus ao sobrenome que adotou artisticamente e, depois de 17 anos de carreira, finalmente entregou ao público o álbum “Galanga Livre”, considerado por muitos o disco do ano.
O artista, natural do bairro Cohab 1, na zona leste da Grande São Paulo, é a atração mais esperada do primeiro dia do Festival Radioca, que acontece nestes sábado (7) e domingo (8), no Trapiche Barnabé. Em entrevista ao bahia.ba, Sapiência faz questão de frisar, assim como na música “Ponta de Lança”, que pretas e pretos estão se amando: “A vaidade pode soar como algo ruim, mas por trás dela há várias coisas que dizem respeito à autoestima e ao nosso posicionamento social”.
Com versos afiados e a música marcada por influências africana e eletrônica, Rincon surpreende ao revelar que, junto às referências mais óbvias, também está um ritmo conhecido pelo público baiano, o pagodão. Segundo ele, em sua playlist há clássicos como É o Tchan! e Harmonia do Samba, mas também algumas novidades: “Atualmente, gosto muito do Igor Kannário, Léo Santana, Gueto é Gueto e por aí vai”.
Entre outras coisas, Rincon também comentou sobre os batedores de panela – “No final das contas, eles não têm uma luta particular, né?” –, a polêmica das cotas na UFMG – “A nossa identidade racial é confusa, é um preto mais claro que tem dificuldade em se posicionar como preto, mas não se identifica como branco” – e até deu pitaco sobre o futuro do alviverde paulista: “Já temos um mundial, por mais que as pessoas queiram fazer piada”.
Confira a entrevista na íntegra:
bahia.ba – Depois de Galanga, ainda falam que você não é um MC acima da média?
Rincon Sapiência – É, eu acho que agora, depois do Galanga Livre, as pessoas não ousariam questionar a minha média como MC. Mas, de qualquer forma, é uma provocação bem humorada sobre o nível do MC no Brasil. Eu acho que quem dá o crível do que é bom ou ruim é o público, né? E isso tem uma relatividade enorme. Mas, assim, quando a gente vê que o momento é bom, acaba deixando um pouca a modéstia de lado. Eu acredito que a minha [média] anda alta nesse exato momento.
.ba – Esse namoro com a literatura nasceu com o Galanga ou é algo antigo? Você pretende lançar algo além-música sobre?
RS – Tem a influência da literatura em si, né? Para se pensar em um conto, na história que é fictícia do Galango… Para criar esse contexto todo que eu criei na faixa “Crime Bárbaro”, teve todo esse tempero da literatura. Mas a minha cabeça também tem as influências de anime, de mangá, de quadrinhos e coisas que eu consumi bastante na minha infância e adolescência. Penso em dar continuidade nisso e nessas formas que eu citei. Seria interessante uma história em quadrinho, um anime, um longa, um curta, um livro… Todas essas possibilidades são possíveis e eu espero realizá-las no melhor momento.
.ba – Em uma música sua você fala que “Os rap dos Clone é Danone”. Aqui na Bahia, o Baco Exú do Blues escreveu que o rap dele “é pipoca e não bloco”. Você acha que existe isso de rap gourmet?
RS – Eu acredito que o rap é plural e ele pode ter essa diversidade toda. Quando eu cito que o rap dos Clones é Danone, eu acho que os clones simplesmente simulam o que vem sendo feito nos Estados Unidos. Eles usam as gírias de lá, fazem as poses de lá e replicam isso para o português. Então, eu avalio como um Danone, como algo doce e leve. Já a gente que se preocupa em trazer uma autenticidade nas coisas, seria como um Contini [a bebida alcoólica], algo que dá uma brisa, que dá um efeito, algo mais forte. Eu vejo que existem várias formas diferentes de fazer rap, a que eu optei é essa que venho exibindo. Eu acho que cada um carrega a responsabilidade de fazer de outras formas e uma dessas outras formas, dependendo do ponto de vista, pode ser visto como gourmet, né? Mas eu procuro não fazer esse tipo de avaliação.
.ba – E o que é o Afro Rap?
RS – Seria fazer um rap menos influenciado pelo rap norte-americano e mais influenciado pela sonoridade da cultura afro, seja no continente africano ou na cultura afrobrasileira. Vejo como uma benção o fato de termos referências como samba, o maracatu, o carimbó, a capoeira, a umbanda, o candomblé. Uma diversidade de conceitos, ritmos e danças. O povo brasileiro gosta muito de dançar. E isso são coisas que nunca propomos muito no rap, porque costumávamos ser influenciados pelos norte-americanos. Acho que o conceito do afro-rap é trazer africanidade para o rap, e isso pode aparecer na vestimenta, na sonoridade, na instrumentação, na rítmica. É o que eu tenho feito, o que fiz no Galanga Livre e o que vai aparecer nos projetos futuros também.
.ba – Seus últimos clipes têm um zelo estético bem interessante e, em suas letras, há várias referências ao cinema – só em Ponta de Lança você cita Lupita Nyong’o, Tarantino e 300. O cinema e o audiovisual em geral são assuntos de seu interesse?
RS – Me apaixonei muito pelo rap por conta dos clipes. Fora ouvir uma música com sonoridade, me agrada ver a parte mais visual do rap, o que as pessoas vestem, como que é a quebrada de cada um. Enfim, o rap por trás da poesia do que a gente escreve, que é visual. Não tem como descolar a música do visual. E foi um entretenimento que eu sempre curti, um lance que eu também tentei fazer profissionalmente. Já cheguei a trabalhar, fazer curso em uma ONG, participar de um doc. Tentei um lance profissional com isso, acabou não rolando, mas eu agrego isso ao meu trabalho atual.
.ba – Em “Elegância” você se assume vaidoso. De onde surgiu essa preocupação com o visual? Quais são suas influências?
RS – O lance da vaidade eu acho que vem naturalmente da minha essência. Não sei explicar muito. Mas meu pai sempre foi muito vaidoso, um cara bonito, com uma barba estilizada. Na época dos cabelos black, o dele era bem bonito, redondo – ele sempre foi um cara ligado à imagem. E tem minha mãe, que é costureira e cabeleira, então esse lance do estilo nasceu naturalmente. Mas, hoje, que eu trabalho com isso, eu já consigo identificar que isso veio porque eu cresci em meio aos tecidos, comprando linha e máquina de costura com minha mãe. O barulho da máquina de costura, os salões de costura, revistas de cabelo, clipes de rap, músicas, Michael Jackson… Tudo isso traz uma série de influência que me fez querer assim e que passa pela vaidade. A vaidade pode soar como algo ruim, mas por trás dela há várias coisas que dizem respeito à autoestima e ao nosso posicionamento social. Então, sou um cara assumidamente vaidoso.
.ba – Ainda sobre “Elegância”, na versão do Show Livre, eu senti uma influência do Pagodão Baiano no arranjo. Foi viagem minha ou realmente existiu?
RS – Não, você tem toda razão. O pagode baiano é um lance que eu escuto mesmo. Durante muito tempo, aqui em São Paulo, principalmente no verão, vêm as ondas de coreografia, desde os anos 1990. Como a gente era cabeçudo, curtia rap, era difícil assumir assim. Mas, eu já gostava do É o Tchan!, Harmonia do Samba, Terra Samba, Araketu, Daniela Mercury, Olodum, Reflexu’s… A música baiana é uma influência muito, muito forte na minha formação de música. Não sou um bom dançarino, mas adoro dançar também, e a música baiana é muito sugestiva em relação a isso. É um lance que a gente vai agregando, porque hoje tem mais domínio sobre como produzir nossa música, temos instrumentistas próprios, companheiros de banda. Conseguimos aplicar as referências na nossa música, que passam do rock ao pagode baiano. Atualmente, gosto muito do Igor Kannário, Léo Santana, Gueto é Gueto e por aí vai.
.ba – Você cita “Tempo Rei” em “Vida Longa”, e já saudou “Andar com Fé”, também de Gilberto Gil. Ele é uma de suas influências?
RS – Absolutamente. O Gil é uma referência. Os álbuns Refazenda e Refavela eu colocaria no topo dos álbuns mais bacanas que já escutei. Refazenda principalmente. Coloco-o entre os grandes da música brasileira e não é nenhum exagero falar que da música mundial também. Um grande compositor, letrista, cantor, instrumentista, tudo isso em alto nível, com uma musicalidade diversa. A gente já viu ele cantar rap, reggae, baião, forró, bossa nova, MPB, forró. Tudo ele executa com maestria, é uma lenda viva que a gente tem na música brasileira.
.ba – Em “Ostentação à Pobreza” você fala da situação dos quilombolas, uma discussão muitas vezes negligenciada pela imprensa e pela sociedade em geral. Você acha que sua música tem este papel de dar à luz a esses assuntos que são deixados de lado?
RS – Eu acho que a música tem um poder de provocar. É pretensão demais isso de querer salvar o mundo, de se ver como um líder, ativista, sendo que, na real, eu sou um artista, um fazedor de arte. A minha força está na minha música, na minha escrita. Agora, a gente sabe também que tem um poder de influenciar e de provocar, porque a música faz as pessoas prestarem atenção. Eu sei que quando toco nesse ponto, várias pessoas são provocadas a pensar a respeito e a pesquisar a respeito – são provocadas, de fato. Então eu acho que passa por aí, né? Você ouve a palavra quilombola e soa como algo distante, dos livros de história. Mas os quilombos ainda existem e, infelizmente, esses muitos conflitos com latifundiários não são noticiados nas grandes mídias, as pessoas acabam não sabendo. Então, a gente sabe que consegue dar um pouco de voz quando aplica essas informações na música.
.ba – Quando eu ouvi o trecho “Peça benção pra bater no tambor” não pude deixar de lembrar de uma matéria da revista Marie Claire que falava que a “Umbanda e o candomblé conquistam jovens descolados no Brasil”. Quais são os limites da apropriação cultural?
RS – As orientações espirituais e religiosas podem quebrar algumas barreiras. Se for de verdade e natural, acho que uma pessoa ‘descolada’ pode se sentir atraída pela Umbanda e pelo Candomblé. Ela pode mergulhar nesse universo sem problema nenhum. A questão é a pessoa se colocar na situação – bater tambor, dançar, colocar as vestimentas, o turbante, o que for –, elementos que fazem parte de uma cultura preta, e ser descompromissada com a cultura preta e com as nossas questões. Então não dá para a pessoa, sei lá, fazer capoeira, praticar Umbanda, e chamar cabelo crespo de cabelo ruim ou usar algum termo que seja racista. Então eu acho que a pessoa pedir a benção seria se comprometer a se enxergar dentro do universo que está fazendo parte. Isso algumas pessoas conseguem fazer e outras não.
.ba – Criolo e Mano Brown já mudaram trechos de músicas nas quais se reconheceram machistas. No seu álbum você aborda as mulheres de uma maneira bem respeitosa. É uma preocupação que você tem?
RS – É uma preocupação, sim, que a gente tem. E vale ressaltar que a gente chega nessa preocupação por conta das mulheres, não tem nada a ver com eu ser superdescolado, superdesconstruído – até porque eu não sou. Mas tem a ver com estar próximo das garotas, de elas serem engajadas e questionarem o quê a gente fala. Estamos de ouvidos e olhos atentos, então essa preocupação passa muito por isso. A gente é constantemente cobrado e pontuado pelas nossas colocações e atitudes, e isso leva a gente mudar para manter a ética e o diálogo. As mulheres que a gente coloca nas músicas, elas vivenciam as experiências que a gente cita e vivenciam experiências até mais árduas que as nossas. Quando a gente canta, fala do povo no geral, do povo preto. Então, a gente está falando das mulheres também. É um processo que aos poucos a gente vai se encontrando, se desconstruindo e dando o nosso melhor.
.ba – Você passou algum tempo em visita à África, em Senegal e Mauritânia. Quais foram as principais diferenças que você percebeu entre a comunidade negra de lá e daqui do Brasil?
RS – É bem curioso, uma coisa que eu identifiquei estando no continente africano – e em dois países nos quais as manifestações da cultura africana são muito fortes – é como o Brasil também é afro. Na questão estética, por incrível que pareça, eu vejo mais cabelos pretos armados e dreadlocks aqui no Brasil do que vi lá. É a coisa mais marcante, o quanto você percebe que o Brasil é afro e que é realmente o país mais negro fora da África.
.ba – Em sua opinião, os “batedores de panela” se manifestam contra o quê?
RS – Os batedores de panela estão preocupados com a manutenção dos privilégios deles. No final das contas, eles não têm uma luta particular, né? Eu acho que eles não militam para nada, bateram panela para se contrapor a nós, ao povão que reivindica questões raciais, de gênero, das causas LGBT… Eles se incomodam com as nossas exigências e batem panelas preocupados de ter que dividir a universidade com a gente, de ter que dividir os espaços com a gente. No final das contas, são pessoas que têm dinheiro, têm acessos, mas não têm engajamento político ou ao menos sabem o que estão fazendo. Elas sabem que foram prejudicadas pelas panelas que bateram e não tão lá reclamando, falando: ‘Certo, a gente bateu panela, tirou a Dilma, botou você [o presidente Michel Temer] e você só tá fazendo merda, então a gente tá aqui para reclamar disso’. Não, a merda está sendo feita e eles estão lá quietos, sem fazer nada.
.ba – Recentemente, houve uma polêmica em relação a estudantes brancos da UFMG que usaram as cotas destinadas a negros e pardos para ingressar na faculdade. Você acha que isso é um sinal de que a sociedade como um todo não leva a sério as conquistas dos movimentos sociais, ou acha que é um caso a parte?
RS – Chega a ser complexo. Acho que, primeiramente, o crivo tem que ser bem executado, para saber quais alunos ingressam no sistema de cotas. Não é o caso do que aconteceu nessas universidades, mas a gente é um país miscigenado e não deixa de ser racista. Muito por conta de uma mistura, de estupros e abusos do passado. A nossa identidade racial é confusa, é um preto mais claro que tem dificuldade em se posicionar como preto, mas não se identifica como branco. Muitas vezes, a pessoa miscigenada também não se vê como branca, nem indígena, por exemplo. A miscigenação é muita complexa no Brasil. O país nunca se preocupou em conversar sobre diversidade étnica. Então, quando veio o sistema de cotas, esses detalhes acabam vindo à tona.
.ba – Se “políticos são péssimos”, qual a nossa esperança para 2018?
RS – Eu acho que o exercício que temos como cidadão é de dar as diretrizes. Tem políticos que apoiam inciativas privadas, outros que pensam mais nas maiorias e por aí vai. De acordo com o pensamento particular dos políticos e dos partidos existem várias diretrizes a seguir. Então, muita gente reivindicou o direito ao voto. Durante muito tempo, os pretos não votavam, mulheres não votavam. Hoje em dia, temos esse direito e temos que participar. De qualquer forma, não conseguimos colocar a mão no fogo por ninguém. Eu não coloco, mas faço questão de escolher quem vai representar a gente. Nossa função é estar antenado e fazer a melhor escolha para 2018. Mas isso pensando nas formas legais. Mas, como já houve um golpe e há manipulações midiáticas, talvez a tendência é que 2018 seja um ano daqueles, nesse sentido.
.ba – Eu vi que você é torcedor alviverde. Ainda tem chance para o Palmeiras no Brasileirão? Foi culpa do Eduardo Baptista?
RS – Se tratando do Palmeiras, acho que o título é nosso em 2017. Já temos um mundial, por mais que as pessoas queiram fazer piada. Temos um mundial bem competitivo, do qual a gente saiu ganhador. Mas, em 2018, acho que a gente vence esse mundial – que gostam de colocar como legítimo – e seremos bicampeões. Posso adiantar para 2018, que vai ser 3 a 1 para o Palmeiras contra o Real Madrid.
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