Até logo, Dr. Laranjeira
Lutava contra uma doença má e traiçoeira, porém, mesmo certos do quanto a vida segue seu curso, de modo inexorável, temos dificuldades em nos conformar com perdas
Pus-me desde ontem apreensivo e amanheci triste. Notícias que davam conta acerca duma repentina piora, no estado de saúde de Dr. João Laranjeira, hoje cedo definiram houvesse afinal ocorrido sua passagem. Lutava contra uma doença má e traiçoeira, porém, mesmo certos do quanto a vida segue seu curso, de modo inexorável, temos dificuldades em nos conformar com perdas, ainda mais, quando se trata da partida definitiva, ao menos deste plano, de um grande personagem, conforme escreveu com propriedade o jovem colega Jardel: um ser “inteligente, integro, brincalhão, sem vaidades os pretensões individuais… .
Na metade da década de setenta ingressei na instituição, onde ele já servia há alguns anos e, caso a memória não me traia ocupava a titularidade de uma das unidades mais importantes da Polícia Civil baiana, à época, a antiga Delegacia de Furtos e Roubos, abrigada no casarão que ladeia o prédio, onde hoje se instala a Chefatura do órgão, antigamente sede da Secretaria da Segurança Pública. Figuras importantes, contemporâneos seus, também militaram ali, a exemplo dos igualmente ícones, Drs. Luiz Vitória Regia e Raimundo Lisboa, com quem tive grandes lições de vida e profissionais, no alvorecer da minha carreira.
Hoje, enquanto amargo a dor pela partida deste homem, de quem privei, sobretudo nos derradeiros anos, o privilégio da amizade, assim como de dois dos seus filhos que, cada um de seu modo lhe seguiram os passos – Ciro se tornou um dos consultores de segurança mais consagrados que atua na área e Marcos ocupa a cadeira maior, na delegacia de importante cidade do Recôncavo, Candeias – relembro, talvez, como forma de conforto, momentos especialíssimos que curtimos juntos, seja na seara do trabalho, ou nas horas prazerosas desta existência tão passageira.
Dia destes, ao ler rabiscos que sempre divulgo na rede, recomendou-me cuidasse viver e curtir os momentos, pois a vida é feita desta colcha de retalhos – os instantes bons que marcam positivamente – e, ainda nesta época, quando seu amado Ciro fazia um giro pela Europa comentou acerca da saudade que estava sentindo. Certo é, com seu perfil guerreiro soube resistir a todo sofrimento físico que a enfermidade impunha ao seu corpo, para trocar com ele, os derradeiros abraços, na chegada do viajante.
Mas, no entremeio das lagrimas impossíveis de conter, ao reprisar mentalmente estas lembranças, sorrio, mesmo porque Dr. Laranjeira sabia da importância do sorriso e sempre tinha uma palavra, uma história, uma mensagem a nos fazer envolvidos em sorrisos. Faço-o porquê viajo àquele passado, no limiar dos anos oitenta, justo quando ocupava ele a titularidade da Furtos, assim chamávamos aquela unidade e decido, em forma de homenagem contar a seguinte história, que creio seja desconhecida de muitos.
Morava ele no bairro de Pitangueiras, numa casa, com a esposa, atual Desembargadora, Dra. Lícia Laranjeira e os filhos, ainda pequenos. Certo dia, ao estacionar sua brasília, na porta da residência, não recordo se estava só, ou acompanhado, eis que elemento encapuzado se dirige a ele, no flagrante intuito de assaltá-lo, ação provavelmente passível de ser concretizada, na razão direta do elemento surpresa.
Todavia, chegando próximo daquele a quem iria vitimar, o indivíduo reconhece a pessoa do afamado delegado, ao que retira a mascara e o chama pelo nome findando numa interjeição: “Dr. Laranjeira, é o senhor”?!! Segue-se nisto a debandada do meliante, capaz de desistir do seu intento, face ao respeito que o homem infundia.
O vulgo daquele errado, “Bate Certo”. Tempos depois, ao ser capturado por força de um mandado prisional, ou em estado de flagrância recebeu o beneplácito do polícia de quatro costados. Dr. João deixou-lhe ir, advertindo: “estamos quites, da próxima vez a cana é dura”. Esta era a norma de um tempo em que polícia era polícia, bandido era bandido, mas havia consideração, mesmo entre dispares.
Note-se, o camarada não desistiu da ação por conta de medo, ou qualquer tipo de ameaça, agiu estribado numa circunstancia que vem se perdendo com o tempo, fazendo com que as relações humanas tenham sofrido baixas significativas, no escárnio do desrespeito ao próximo.
A este homem, digno de tanta reverência vida afora, meu amplexo de despedida, inicialmente comentando da certeza de que, por conta dos méritos alcançados, na esteira de uma existência honrada e leal, seguramente, seu abrigo no infinito será florido e oloroso. Alem disto, na medida em que induvidosamente a vida transcende, confio em nosso reencontro num amanhã que ao Pai pertence, pois, a roupa perecível que usamos neste plano, guarda alma perenal e imorredoura.
Quis o destino não estivesse em Salvador, para levá-lo à ultima morada terrena, mas, meu pensamento voou para perto de seu corpo e de todos aqueles que o amam – são muitos –, mas, sobretudo, até a viúva e filhos, hoje tristes e chorosos face à perda, para quem rogo a Deus, lhes conceda resignação necessária, a fim de atravessar este difícil vale, imenso e vazio.
Até logo, caro mestre. Seguramente estaremos juntos outra vez, para sorrir e comentar, na eternidade, sobre a beleza da vida.
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