Fora dos estádios, o futebol é vítima de violência!
Artigo de Levy Moscovits
Para além dos clássicos e dos grandes jogos dessa semana, o Brasil assistiu a quatro episódios de violência brutal onde agressores travestidos de torcedores transformaram em vítimas atletas de diferentes clubes do futebol brasileiro, por meio de atos de ignorância e selvageria.
No dia 24 de fevereiro, no trajeto para o Estádio da Fonte Nova (Salvador/BA), o ônibus que levava a delegação do Esporte Clube Bahia foi atacado por bombas que atingiram jogadores e membros da comissão técnica. Informações preliminares atribuem a autoria do fato a seus próprios torcedores.
Dentre as vítimas, o caso mais grave foi o do goleiro Danilo Fernandes, que foi ferido pelos estilhaços de vidro e precisou ser levado ao hospital e, por pouco, não perdeu a visão de um dos olhos. Isso fatalmente provocaria a sua aposentadoria precoce dos campos.
No dia seguinte (25/02), no aeroporto internacional Gilberto Freyre (Recife/PE) após o desembarque, a van que conduzia os atletas e o staff do Náutico foi emboscada por torcedores alvirrubros e diversos objetos foram arremessados no veículo, quebrando um de seus vidros. Dessa vez, por sorte, ninguém se feriu.
Um dia depois (26/02), quando conduzia seus atletas para o derby contra o Internacional no Estádio do Beira-Rio (Porto Alegre/RS), o ônibus do Grêmio foi atingido por uma pedra que quebrou uma janela e atingiu a cabeça do meio-campista Villasanti, que precisou ser imediatamente conduzido ao hospital.
Nesse mesmo dia, durante a partida entre Paraná Clube e o União no Estádio da Vila Capanema (Curitiba/PR), torcedores invadiram o campo e agrediram atletas, membros da comissão técnica e repórteres que cobriam os acontecimentos do jogo.
Esses quatro lamentáveis casos reforçam a necessidade de refletir se os permissivos legais existentes possibilitam a exemplar atuação das instituições de segurança pública. Nessa senda, há que se avaliar se os fins almejados pela Lei nº. 10.671/2003 – o Estatuto do Torcedor – estão sendo satisfatoriamente alcançados.
A fim de possibilitar uma melhor compreensão das premissas e das conclusões esperadas, que se tome por base o citado acontecimento que envolveu os atletas e comissão técnica do Bahia. Em uma análise preliminar e observados os fatos que até então já foram apurados, a conduta dos torcedores – inclusive daquele que dirigia o veículo que possibilitou a fuga do grupo – se amolda ao crime de homicídio qualificado (art. 121, §2º, inciso III do Código Penal) em sua forma tentada, o que pode resultar uma pena de reclusão de 12 a 30 anos.
Ainda que se afirme não haver a manifesta intenção de tirar a vida do goleiro Danilo Fernandes ou de outro membro do elenco ou comissão técnica do clube, os torcedores/agressores agiram com dolo eventual, vez que assumindo o risco de produzir o resultado, com total indiferença quanto à óbvia possibilidade de provocar lesões aos passageiros, atiraram bombas no ônibus do clube que seguia para o estádio, minutos antes do jogo, ou seja: jogadores e staff do Bahia estariam dentro dele. Prova disso é que um desastre ainda maior poderia ocorrer, com consequências ainda mais sérias, se o atingido fosse o motorista do veículo. Aqui, é válido recorrer à figura do homem médio – instituto jurídico utilizado para parametrizar a capacidade de consciência na tomada de decisões – para afirmar que os agressores tinham previsibilidade do resultado provocado.
Entretanto, o cerne da questão é: o que pode ser feito para se evitar que novas agremiações esportivas, seus atletas e comissões técnicas sejam novamente alvos de pessoas que, em nome de uma suposta e trágica paixão ao clube, ameaçam, agridem e podem vir a matar?
A bem da verdade, o Estatuto do Torcedor é limitado. Trata-se de norma criada há quase 20 anos e que se mostra incapaz de tutelar com eficiência os direitos envolvidos dentro e fora das praças esportivas.
No Direito Comparado, não raro é possível constatar que a gestão dos eventos do desporto se adequa, com muito mais encaixe, às regras trazidas na sua própria legislação. Na Inglaterra, por exemplo, desde a década de 80, já há uma política de combate aos hooligans – torcedores que praticavam diuturnamente atos de violência e vandalismo – e que traz disposições interessantes.
Lá, o torcedor que é flagrado praticando atos violentos, de briga ou destruição, recebe a chamada Ordem de Banimento do Futebol (Football Banning Orders – FBO) e é obrigado a ficar afastado dos estádios de três a dez anos. E a fiscalização é possível, já que o torcedor banido precisa se apresentar a uma delegacia de polícia enquanto seu time joga até o fim da partida. Caso desrespeite, é processado e preso.
Uma discussão sobre a adoção de modelo similar mostra-se imprescindível, inclusive porque a sociedade acaba por condenar primordialmente as instituições de segurança pública, já fragilizadas. Sem razão! Por mais que a Polícia Militar efetue o devido acompanhamento preventivo de torcidas e dos eventos esportivos, não há como prever todas as situações. Estratégias já são utilizadas, mas o caos da mente humana consegue burlar qualquer sistema falível de segurança. E esse raciocínio também se aplica à Polícia Civil, responsável por promover a investigação e reunir elementos que subsidiarão o Ministério Público no processo penal contra os infratores.
Assim, respondendo a pergunta que gerou o cerne da questão, cabe ao Poder Legislativo Federal debater a viabilidade da adoção de medidas adequadas a norma brasileira, tomando por inspiração o modelo inglês, promovendo uma profunda revisão do Estatuto do Torcedor e normas correlatas.
Ademais, é de responsabilidade dos Poderes Executivos Estaduais aparelharem cada vez mais as instituições de segurança pública, possibilitando uma maior e mais inteligente supervisão dentro e fora das praças esportivas, inclusive, com a adoção de políticas públicas de prevenção e cumprimento repressivo, quando for o caso.
Por fim, deve o Ministério Público e o Poder Judiciário promoverem discussões e um estudo junto às Federações de Futebol, Polícias Civil e Militar e torcidas organizadas para estarem mais próximos da problemática, reconhecendo que somente assim, num esforço em conjunto, não haverá mais Danilos, Villasantis e nenhum outro atleta ou demais atores que integram a comissão técnica e a cobertura esportiva, como vítimas da violência em seu ambiente de trabalho, dentro e fora do campo.
Levy Moscovits é advogado e professor, especialista em Ciências Criminais e sócio do Moscovits & Guerra Lima Advogados
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