Publicado em 17/05/2016 às 06h00.

Tese do crime passional, o caminho mais curto para a impunidade

Na tentativa de escapar à punição, homens matam as companheiras e alegam que agiram sob violenta emoção

Jaciara Santos
MULHER 2
Imagem ilustrativa (Foto: Reprodução /Youtube)

 

É lugar-comum, expressão antiga, mas não perde a atualidade. Ainda nem se falava em Lei Maria da Penha nem em feminicídio, mas os muros das cidades já gritavam “Quem ama não mata”. No entanto, décadas depois desse grito de guerra das feministas dos anos 1970, ainda existem homens que mantêm intacto aquele ancestral sentimento de posse sobre a mulher que escolheu pra chamar de sua. E, exatamente por se sentirem donos, agem como se guardassem todos os direitos sobre vida e morte da companheira do presente ou de passado recente.

Dias atrás, dois registros de violência contra a mulher com resultado morte chamaram a atenção da sociedade baiana. Com autoria determinada, os dois crimes foram cometidos pelo companheiro de cada uma das vítimas. Outro ponto que aproxima os dois casos: imediatamente após o homicídio, a defesa começou a pavimentar a estrada que conduz à impunidade, arguindo que o autor estava fora de controle no momento do crime. Ou seja, o ato teria sido cometido sob violenta emoção, circunstância atenuante em casos de homicídio.

O primeiro caso aconteceu em Vitória da Conquista, cidade do centro-sul baiano, a 509 quilômetros da capital. A vítima, uma jovem de 21 anos, Jéssica Nascimento. Ela morreu na terça-feira (10), depois de duas semanas internada no hospital geral do município, em coma induzido. Grávida de quatro meses, a moça foi brutalmente espancada pelo namorado, o estudante de Engenharia Civil Américo Francisco Vinhas Neto, 24. As razões alegadas não estão ainda claramente definidas, mas há rumores de que ele não queria o filho que a jovem esperava e teria resolvido se livrar dos dois.

No segundo caso, a vítima foi uma professora de 40 anos, residente em Salvador. A morte encontrou Sandra Denise Costa Alfonso em seu local de trabalho, em pleno horário de expediente, numa escola repleta de crianças. Ela foi morta a tiros e, sequer, chegou a ser socorrida. O autor, o major bombeiro Valdiógenes Almeida Junior, 45, subcomandante do 3º Grupamento de Bombeiros Militar, (Iguatemi), usou como motivação o ultraje de uma suposta traição. conjugal  O casal tinha uma filha de 14 anos e estava junto há mais de 20 anos.

Mulheres não são mortas de repente. Tudo começa com uma agressão verbal, um “empurrãozinho de nada”, um tapa – atos frequentemente seguidos de um pedido de desculpas e de juras de que não mais se repetirão. E não são poucos os casais que se enquadram nesse perfil. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam em até 52% o percentual de mulheres que foram agredidas fisicamente pelo parceiro em algum momento de suas vidas. No Brasil, as pesquisas indicam que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos. Em mais de 80% dos casos, o autor da agressão é o parceiro ou um ex-parceiro da vítima.

No Brasil, as pesquisas indicam que

cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos 

Mas, apesar de representar um quadro assustador, a violência doméstica contra a mulher continua sendo uma espécie de assunto-tabu. Todos sabem que existe, mas há sempre um certo pudor em abordar o tema abertamente. Para se ter uma ideia, um levantamento do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) –  Tolerância social à violência contra as mulheres  – aponta que 63% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. E 89% concordam que “a roupa suja deve ser lavada em casa”, ao passo que 82% consideram que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Jéssica, a moça de Vitória da Conquista, foi espancada até a morte pelo namorado. A julgar pelas estatísticas, a última surra pode não ter sido a primeira. Teria ela pedido ajuda antes? Alguém da sua rede de relações teria lhe alertado para os riscos que ela estava correndo? Ou ninguém quis ver possíveis sinais de risco naquele relacionamento?

Sandra, a professora morta a tiros em Salvador, aparentemente vivia bem com o major Valdiógenes. Mas, ao que tudo indica, ele nutria por ela um ciúme doentio. Senão, como explicar que tenha instalado uma ferramenta para monitorar suas conversas no WhatsApp?

Os dois dramas têm particularidades que os tornam tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão similares entre si. Mas um  aspecto não pode ser desprezado: o anacronismo da tese preliminar da defesa, calçada no mais perverso machismo. Em tempos de WhatsApp, ressuscitar o embolorado argumento do crime cometido sob violenta emoção (no caso da professora, para lavar a honra) representa um retrocesso.

Ademais, na passionalidade, existe o fator imponderável, a surpresa, a não premeditação. O que existe de passional no ato de espancar até a morte uma mulher que leva no ventre um filho indesejado? E onde está a paixão cega na ação de entrar armado numa escola e atirar, uma, duas, três vezes numa mulher indefesa?

De volta ao começo, nunca é demais lembrar que “quem ama, não mata”. Muito pelo contrário, como diz a canção, “quando a gente ama, é claro que a gente cuida”.

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