Jornalista com experiência na área cultural, com passagem pelo Caderno 2+ do jornal A Tarde. Atuou como assessor de imprensa na Viva Comunicação Interativa, produzindo conteúdo para Luiz Caldas e Ilê Aiyê, e também na Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador. Foi repórter no portal Bahia Econômica e, atualmente, cobre Cultura e Cidade no portal bahia.ba.
DRT: 7543/BA
Publicado em 26/09/2025 às 05h30.
Caruru de setembro: como tradição afro-baiana celebra fé e ancestralidade
Servido primeiro às crianças e ligado aos Ibejis e a Cosme e Damião, o prato reforça a identidade cultural da Bahia
João Lucas Dantas

A tradição do caruru para Cosme e Damião, santos celebrados em 26 de setembro, assim como a associação desses santos gêmeos com os Ibejis, divindades da cultura iorubá que protegem as crianças e comemoradas em 27 de setembro, continua sendo um dos maiores eventos religiosos da Bahia.
Fruto do sincretismo religioso característico do estado, a celebração permite que as influências africanas sobrevivam e se manifestem publicamente, mesmo em um contexto associado ao catolicismo. O prato típico, preparado com quiabo, camarão seco, azeite de dendê e outros temperos, é servido primeiro às crianças, por isso conhecido como “caruru de sete meninos”.
Origens do caruru
Mas de onde exatamente veio o prato? É o que responde Pai Saulo de Sakpatá, líder religioso do Guerebetã Ahunsú Hundô, terreiro de nação mina-jeje em Jambeiro, Lauro de Freitas, e doutor em filosofia religiosa.
“O caruru é originário da África, de diversas tribos africanas. Cada iguaria que compõe aquele prato é a oferenda de um vodun [termo usado para designar os espíritos divinos cultuados pela tradição religiosa fon, na região do Benin], orixá ou inquice [seres espirituais das culturas Bantu, originárias especialmente da região de Angola e Congo, que se manifestam como divindades). E, em um momento de festejo ao culto dos voduns hohos, erês [entidade espiritual ligada à infância] e Ibejis [orixás gêmeos do panteão iorubá], cada um presenteou com sua própria comida para compor a iguaria”, explicou Pai Saulo em entrevista ao bahia.ba.
No prato ou mesa de oferenda, além do caruru, acompanham outros alimentos que remetem ao banquete dos orixás ou ao ritual religioso, como feijão fradinho, vatapá, abará, acarajé, farofa de dendê, banana, cana e rapadura. Também há gestos simbólicos, como o de encontrar um quiabo inteiro no prato, o que pode significar que a pessoa deverá ofertar caruru no ano seguinte.
Como toda tradição trazida de diferentes partes do mundo para o Brasil, o caruru também passou por transformações, com a incorporação de ingredientes locais e a mistura cultural entre africanos, indígenas e europeus.
“Toda cultura africana, gastronômica, artística ou religiosa, sofreu mutações ao chegar ao Brasil, devido ao processo de colonização e à imposição do catolicismo. As iguarias africanas eram ofertadas nos dias de culto de celebração da divindade. Xangô [orixá associado à justiça] e Oyá [orixá dos ventos, das tempestades e dos mortos], por exemplo, recebiam às quartas-feiras o amalá [prato à base de quiabo ofertado a Xangô] e o akará [nome iorubá para o acarajé, oferecido a Oyá]. Assim acontecia com todas as outras divindades, utilizando apenas cebola, camarão e azeite de dendê como tempero”, esclareceu o babalorixá.
“Quando os africanos foram arrancados de sua terra e trazidos de forma sub-humana para o Brasil, perderam sua dignidade, fundamentos e alguns cultos às divindades. Por isso, houve a necessidade de adaptações para garantir a continuidade desse legado ancestral”, acrescentou.

Foto: Acervo Pessoal
Significado espiritual do prato
Para entender o significado espiritual do caruru dos Ibejis no candomblé e por que eles são associados às crianças e à fartura, é preciso lembrar que as divindades são filhos de Sogbô, vodun da propriedade, da verdade e da justiça.
“Sogbô vinha sendo roubado dentro do seu palácio. Todos os dias, fazia a oferenda e a deixava esfriar na janela, mas quando voltava, a comida não estava mais lá. Pediu então ajuda aos filhos gêmeos, os Ibejis. Brincalhões e inteligentes, eles desconfiavam que quem pegava a oferenda era Exu [orixá mensageiro e guardião dos caminhos]. Fizeram um trato, tocariam músicas para Exu dançar no barracão de Sogbô e, se ele se cansasse, teria de revelar o responsável pelo roubo”, relatou Pai Saulo.
“Exu, sem saber que eles eram gêmeos, aceitou a proposta. Chegou ao palácio de Xangô e começou a dançar, enquanto apenas um Ibeji tocava, o outro se escondia atrás da pilastra. Quando um cansava, trocavam de lugar. Exu, exausto, não conseguiu continuar e perdeu a aposta, sendo obrigado a revelar que ele mesmo comia o amalá de Xangô”, continuou.
“Sogbô então fez um acordo com Exu. Antes de comer, ele sempre colocaria os padês, oferenda predileta do orixá, na porta de casa. Assim, não precisaria mais roubar. Como gratidão aos Ibejis, pediu que todos os outros orixás levassem um pouco de sua comida ao seu reino, para uma festa dedicada aos filhos. Assim surgiu o tão desejado prato do caruru”, afirma.

Tradição das sete crianças
O babalorixá também explicou a tradição de servir o prato primeiro a sete crianças, como se faz em Salvador e proximidades, apontando a força simbólica desse gesto.
“Como a oferta é feita a divindades infantis, o número sete representa caminho. Ao servir as sete primeiras crianças, faz-se um pedido de crescimento material, emocional e espiritual para aquelas novas vidas, ainda puras, que constroem novos caminhos”, avaliou.
“É trazer o agrado espiritual de forma material, com sete crianças representando os Ibejis: espíritos novos, de corações puros, na perspectiva de bons caminhos. Afinal, ninguém nasce ruim; as pessoas são direcionadas ao negativo. A criança crescerá de acordo com o que lhe for transmitido. Elas sempre serão a esperança da nossa religião, na crença de dias melhores para todos os adeptos”, reforçou Pai Saulo.
Questionado sobre a importância de manter o prato e a tradição vivos como expressão da identidade afro-brasileira e da resistência cultural dos baianos, o líder religioso afirma ser necessário reafirmar e fortalecer toda uma ancestralidade viva, desde que seja usada com responsabilidade.
“Na cultura africana, não se deve consumir azeite de dendê às sextas-feiras, em respeito a Oxalá, divindade do dia. Na tentativa de desapropriação cultural, aqui na Bahia, esse foi justamente o dia escolhido para restaurantes servirem essas iguarias, sob o nome de ‘comida baiana’, quando o correto seria ‘comida africana’. São oferendas do candomblé e precisam ser reconhecidas. É uma questão de identidade religiosa”, concluiu.
Em 2024, o Caruru de São Cosme e Damião foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Bahia. O registro é visto como forma de proteger, valorizar e garantir a continuidade dessa tradição, que carrega memórias, afeto, identidade cultural, religiosidade e resistência. E que não falte caruru na mesa de nenhum baiano nesta sexta-feira ou neste sábado.
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